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20 de Maio de 2024
  • 2º Grau
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Detalhes

Processo

Órgão Julgador

DÉCIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL

Partes

Publicação

Julgamento

Relator

EDUARDO GUSMAO ALVES DE BRITO NETO

Documentos anexos

Inteiro TeorTJ-RJ_APL_00918243320038190001_292ed.pdf
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Inteiro Teor

ESTADO DO RIO DE JANEIRO

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

DÉCIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL

Apelação Cível n.º: XXXXX-33.2003.8.19.0001

Apelantes: Renato Edison da Silva Prallon e Nyce de Souza Prallon

Apelados: Alberto Miguel Carmo e Sônia Tereza Carmo, ambos pela Curadoria Especial

Apelação Cível. Ação de usucapião. Pretensão deduzida por possuidores de mais de 20 anos, que afirmam ter ingressado no imóvel como locatários, mas logo passado a exercer a posse com animus domini. Proprietários cujo paradeiro se desconhece. Citação por edital. Posse comprovadamente exercida de forma mansa e pacífica. Inversão do caráter da posse. Existência de atos que, de forma inequívoca, indicam a mudança da qualidade da posse, originalmente precária, como a cessação do pagamento de aluguéis, a realização de obras de conservação no bem e a quitação de débitos tributários de períodos pretéritos. Função social da posse. Desídia dos proprietários registrais exteriorizada pela ausência prolongada, que se extrai do insucesso das diligências realizadas pelo Juízo no intuito de localizá-los. Recurso ao qual se dá provimento para declarar os apelantes proprietários do imóvel descrito na inicial, consoante o artigo 1.238 do Código Civil.

Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação Cível n.º XXXXX-33.2003.8.19.0001, em que são apelantes Renato Edison da Silva Prallon e Nyce de Souza Prallon e apelados Alberto Miguel Carmo e Sônia Tereza Carmo.

ACORDAM os Desembargadores da Décima Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, à unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso, nos termos do voto do relator .

ESTADO DO RIO DE JANEIRO

PODER JUDICIÁRIO

RELATÓRIO

Renato Edison da Silva Prallon e Nyce de Souza Prallon ajuizaram ação de usucapião contra Alberto Miguel Carmo e Sônia Tereza Carmo , com fulcro no artigo 1.238 do Código Civil, no intuito ver reconhecido o domínio sobre o imóvel situado na Rua São Francisco Xavier, n.º 43, apto. 802, transcrito no livro 3-DL, às fls. 21, sob a matrícula 82.510 no 11º RGI.

Afirmaram os autores habitar o imóvel desde o ano de 1981, como se donos fossem, e não possuir qualquer outro imóvel, urbano ou rural. Foi requerida, ainda, a citação dos confrontantes e dos proprietários registrais, estes últimos por edital.

O Município do Rio de Janeiro manifestou seu desinteresse na causa às fls. 231. No mesmo sentido, manifestação da União às fls. 233 e do Estado do Rio de Janeiro às fls. 240.

Não obstante o envio de diversos ofícios a entidades públicas e privadas, os réus não foram localizados. Realizada a citação por edital, apresentou a Curadoria Especial a contestação de fls. 273/278.

Às fls. 427/428 consta assentada de audiência especial em que o 1º autor afirmou ter ingressado no imóvel na qualidade de locatário, sendo que atualmente desconhece o paradeiro dos locadores. Foram ouvidas, ainda, duas vizinhas dos autores que afirmaram desconhecer os apontados proprietários.

Às fls. 436/438 foi proferida sentença pelo ilustre Magistrado Ricardo Lafayette Campos que julgou improcedente o pedido ante a inexistência de animus domini, pois os autores não teriam exteriorizado por qualquer ato ostensivo a inversão da posse.

Inconformados, apelaram os demandantes às fls. 440/460, argumentando a inexistência de prova da relação locatícia. Afirmam os recorrentes que há mais de 20 anos não é pago aluguel e que não há relação jurídica com os proprietários registrais. Por fim, sustentam que a jurisprudência admite pacificamente a transformação do caráter da posse.

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Contrarrazões pela Curadoria Especial às fls. 480v.

Parecer da douta Procuradoria de Justiça às fls. 487/491 pelo provimento do recurso.

É o relatório.

VOTO

Três requisitos são essenciais a qualquer modalidade de usucapião prevista em nosso ordenamento jurídico: tempo, posse mansa e pacífica e animus domini.

No caso presente, os apelantes lograram comprovar o requisito tempo. Documentos dos autos comprovam que, nos idos de 1982, os mesmos pagaram o imposto predial pendente sobre o bem, tributo este que, diga-se de passagem, fora constituído em 1979 (fls. 17) e, à época, era objeto de execução fiscal intentada contra os apelados. Sendo a posse de mais de vinte anos, restou preenchido o requisito temporal mesmo na modalidade prevista no artigo 1.238 do Código Civil.

A inexistência de demandas judiciais envolvendo o bem foi suficientemente comprovada pelas certidões negativas acostadas aos autos. A mansidão no exercício da posse se extrai, também, das declarações dos vizinhos, no sentido de não conhecerem outros moradores ou titulares do bem.

Ficou comprovado pelas mesmas certidões, ainda, não serem os demandantes titulares de outro bem imóvel, rural ou urbano, coisa que, aliás, só seria exigível caso fosse o pleito fundado no artigo 1.240 do Código Civil, que trata do usucapião especial.

O Juízo a quo, porém, julgou que o pedido improcedente por falta de animus domini, já que o primeiro apelante declarou, em audiência, ter ingressado no imóvel na qualidade de locatário. A sentença ressalva a possibilidade de reconhecimento da alteração da qualidade da posse dos demandantes, originalmente precária, mas afirma a necessidade de que tal alteração seja exteriorizada através de um ato inequívoco de vontade. Isso

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porque a jurisprudência, de fato, vem admitindo, ainda que com certas cautelas, a inversão do título da posse, que entretanto depende de prova cabal, ante o disposto no art. 1203 do Código Civil, segundo o qual: “ Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse com o mesmo caráter com que foi adquirida”.

Esta a linha interpretativa adotada por respeitáveis doutrinadores. José Carlos de Moraes Salles, por exemplo, em obra clássica sobre o tema, discorre: “ Por outro lado, como se verá posteriormente, embora legítima, a posse direta do comodatário, do locatário e do próprio depositário não é tida com animus domini, ou seja, com ânimo de proprietário. O comodante, o locador e o depositante são titulares de posse indireta da coisa e, em princípio, os proprietários da

mesma.....Discordamos, pois, nesse passo, de Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, que, com esteio no ponto de vista de Lenine Nequeti, afirma: “A posse precária seria incomputável, aos efeitos do usucapião extraordinário, se fosse elemento desta prescrição aquisitiva à boa-fé. Contudo, como ela é dispensada, nada impede a contagem, conforme estamos acentuando.” É que, como ressaltamos, a precariedade não cessa nunca e a posse assim viciada não serve à aquisição por usucapião.”

Tamanho rigor vem sendo flexibilizado pela jurisprudência, diante de situações de abandono da coisa pelo proprietário, ou de frontal desafio pelo locatário ou comodatário do titular registral, tudo através de comportamentos que indiquem a presença do chamado animus rem sibi habendi.

o fundamentar seu voto no REsp nº 220.200-SP, a eminente Ministra Nancy Andrighi afirmou inexistir, a priori, “incompatibilidade entre ser possuidor direto, na condição de promitente-comprador do imóvel, e adquirir a propriedade por usucapião, pois há sempre a possibilidade da mudança do caráter da posse, de não própria para própria”, mas ressaltou que, para isso, “deve o possuidor praticar atos que demonstrem o querer agir na condição de proprietário, como a realização de benfeitorias, a interrupção do pagamento de aluguéis, a desobediência às ordens do proprietário”.

No mesmo sentido, transcreve-se:

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USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. PROMESSA DE VENDA E COMPRA. TRANSMUTAÇÃO DA POSSE, DE NÃO PRÓPRIA PARA PRÓPRIA. ADMISSIBILIDADE.

– "O fato de ser possuidor direto na condição de promitentecomprador de imóvel, em princípio, não impede que este adquira a propriedade do bem por usucapião, uma vez que é possível a transformação do caráter originário daquela posse, de não própria, para própria” ( REsp nº 220.200-SP). Recurso especial não conhecido.

( REsp XXXXX/GO, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, julgado em 06/04/2004, DJ 14/06/2004 p. 221)

“CIVIL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS. MUTAÇÃO DA NATUREZA JURÍDICA DA POSSE ORIGINÁRIA. POSSIBILIDADE.

O usucapião extraordinário - art. 55, CC - reclama, tão-somente: a) posse mansa e pacífica, ininterrupta, exercida com animus domini; b) o decurso do prazo de vinte anos; c) presunção juris et de jure de bo -fé e justo título," que não só dispensa a exibição desse documento como também proíbe que se demonstre sua inexistência ". E, segundo o ensinamento da melhor doutrina," nada impede que o caráter originário da posse se modifique ", motivo pelo qual o fato de ter havido no início da posse da autora um vínculo locatício, não é embaraço ao reconhecimento de que, a partir de um determinado momento, essa mesma mudou de natureza e assumiu a feição de posse em nome próprio, sem subordinação ao antigo dono e, por isso mesmo, com força ad usucapionem . Precedentes. Ação de usucapião procedente. Recurso especial conhecido, com base na letra c do permissivo constitucional, e provido.”

( REsp XXXXX/DF, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 05/12/2000, DJ 19/03/2001 p. 111)

"Apelação. Ação de despejo por falta de pagamento c/c cobrança de alugueres e acessórios de locação. Possibilidade de alegação de usucapião em defesa. Súmula 237 do STF. Provas produzidas e carreadas aos autos permitem vislumbrar a modificação na natureza da posse exercida pelo requerido. Locatários deixam de pagar os aluguéis, e o locador queda-se

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inerte. Posse passa a ser exercida com animus domini, sem oposição pelo requerente, ou terceiro. Grande lapso temporal entre a "rebelião" dos locatários, conforme prova testemunhal, com a resultante recusa em pagar os alugueres, e a propositura da ação. Recurso a que se nega seguimento, com apoio no art. 557 do C.P.Civil."

(Apelação Cível XXXXX-83.2007.8.19.0066 (2009.001.33995) - TJRJ 16ª Câmara Cível - DES. CARLOS JOSE MARTINS GOMES - Julgamento: 04/09/2009)

Como se vê, a solução da controvérsia tem como ponto central o momento em que os apelantes deixaram de se comportar como inquilinos e passaram a exercer a posse como se donos fossem. Nota-se, aqui, que a despeito da existência da relação locatícia – relação que não se sabe ao certo quando começou e em que bases veio a se extinguir – todas as alegações e documentos providos pelos demandantes são no sentido do exercício da posse com animus domini há mais de 20 anos, o que inclui o pagamento em nome próprio de tributos incidentes sobre o imóvel, cotas condominiais e realização de obras para melhoria e conservação do bem.

Dos proprietários registrais, Alberto Miguel Carmo e Sônia Tereza Carmo, sabe-se apenas que receberam o bem por doação de seus pais, Alberto Carmo e Ana Lima Carmo, através de escritura pública realizada em 04/01/1973 e levada a registro no RGI em 03/06/1975 (fls. 10), que, na data da escritura, eram menores púberes e residiam no imóvel usucapiendo. A doação, aliás, foi feita por procuração, já que os alienantes residiam na hoje extinta parte oriental de Berlin, Alemanha.

A par das suposições do demandante no sentido de que os proprietários deixaram o país, fato é que as diligências do Juízo para sua localização se revelaram infrutíferas, o que corrobora a situação de ausência ou desinteresse descrita na inicial. Fica o conflito reduzido, então, à oposição do interesse dos apelantes, possuidores sem título, ao presumido interesse dos apelados em conservar o direito de propriedade, mesmo que este se mostre há muito esvaziado de qualquer conteúdo social ou econômico.

A Constituição da Republica, ao tratar do direito de propriedade, trouxe duas premissas a serem observadas: a garantia do direito à propriedade (artigo 5º, XXII) e a observância da função social da

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propriedade (artigo 5º, XXIII). A aparente contradição entre direito e função social do direito é esclarecida por Pietro Perlingieri como da seguinte maneira: o sistema apenas legitima a satisfação de interesses particulares à medida que o seu exercício seja preenchido por uma valoração socialmente útil (Perfis do Direito Civil, p. 121). Corolário direito desta diretriz constitucional é o usucapião especial, definido no artigo 183 da Carta, em que a função “moradia” ganha especial relevância para a declaração do direito.

Se os apelados são, objetivamente, proprietários desidiosos – a despeito de existir alguma motivação, justa ou não, para tal desídia – é compreensível que os possuidores, ao longo dos anos, tenham deixado de agir como locatários e passado a exercer a posse com animus domini, sem que qualquer repercussão desta atitude tenha chegado ao conhecimento dos proprietários. A ausência dos apelados, em outras palavras, pode até explicar o desinteresse pelo bem, mas não pode servir como um entrave permanente

o reconhecimento da inversão do título da posse pelos locatários. Porque se ausentes os titulares, nada que façam os possuidores lhes dará ciência da mudança do caráter da posse.

Se a própria Constituição dispõe que os direitos existem para serem exercidos – e não meramente conservados – não há como deixar de reconhecer serem os apelantes aqueles que vêm, por mais de duas décadas, exercendo e conservando a posse, em contraposição à ausência ou falta de interesse dos titulares do domínio.

Por todo o exposto, meu voto é no sentido de dar provimento ao recurso para declarar os apelantes proprietários do imóvel descrito na inicial, consoante o artigo 1.238 do Código Civil.

Rio de Janeiro, 26 de outubro de 2010.

EDUARDO GUSMÃO ALVES DE BRITO NETO

Desembargador Relator

0091824-33.2003-AC-POSSESSÓRIA-Usucapião-Possedeimóvelurbano-locárioscanimusdomini (voto) ana-EG.doc 7

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